Bênçãos (Versão Revista e Ampliada)

[Versão revista e ampliada de um artigo que publiquei neste mesmo blog, Liberal Space, em 13 de Novembro de 2009. Corrigi uns errinhos, e acrescentei duas contribuições.}

o O o

Apesar de minha religiosidade deixar muito a desejar (para usar um eufemismo), gosto das bênçãos que o Judaísmo e o Cristianismo contribuíram para a nossa cultura. Esta é a chamada “Bênção Aarônica”, encontrada no Velho Testamento (Números 6). Sempre a achei muito bonita:

“O Senhor te abençoe e te guarde.

O Senhor faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti.

O Senhor sobre ti levante o rostoe te dê a paz”

(Números 6. Texto original em Hebraico:

יְבָרֶכְךָ יְהוָה, וְיִשְׁמְרֶךָ – yevarechecha Adonai veyishmerecha

יָאֵר יְהוָה פָּנָיו אֵלֶיךָ, וִיחֻנֶּךָּ – ya’er Adonai panav eleicha vichunecha

יִשָּׂא יְהוָה פָּנָיו אֵלֶיךָ, וְיָשֵׂם לְךָ שָׁלוֹם – yissa Adonai panav eleicha veyasem lecha shalom)

[Texto hebraico retirado da Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Benção_sacerdotal]

o O o 

Esta é uma bênção cristã antiga, do século IV, também muito bonita, que encontrei no site “Povo Metodista” (e transcrevo aqui com pequenas modificações de forma):

“Que o Senhor esteja ao teu lado, como teu amigo e companheiro de jornada;

Que o Senhor esteja sobre ti, velando por ti e te abençoando;

Que o Senhor esteja abaixo de ti, calçando os teus pés e firmando os teus passos;

Que o Senhor esteja à tua frente, como a luz que ilumina a tua caminhada;

Que o Senhor esteja às tuas costas, guardando-te completamente de pessoas maldosas e desleais;

Que o Senhor esteja dentro de ti, dando-te força, coragem, fé e vontade de viver;

E que o Senhor esteja ao teu redor, envolvendo-te completamente com o seu amor.”

o O o

Em Comentário, na mesta data em que o artigo foi originalmente postado, Sueli Barbosa Cavalcanti Jardim, amiga querida, de longa data, me enviou esta bênção, irlandesa, que tomo a liberdade de acrescentar aqui, agradecendo a contribuição:

“Que a estrada se erga ao encontro do teu caminho;

Que o vento esteja sempre às tuas costas;

Que o sol brilhe quente sobre tua face;

Que a chuva caia suave sobre teus campos;

E, até que nos encontremos de novo,

Que Deus te guarde na palma de suas mãos.”

[Se outros leitores tiverem conhecimento de outras bênçãos, e quiserem compartilhá-las, ficarei grato.]

o O o

Em 14.6.2012, dois anos antes de ele morrer (e dezenove dias antes de eu me casar com a Paloma na Igreja), o meu querido e saudoso amigo Rubem Alves me enviou uma série de poemas, cada um mais lindo do que outro, que eu guardo com carinho e cuidado, e, entre eles, estava a “Bênção Irlandesa”, que é quase idêntica à que a Sueli havia me enviado menos de três anos antes:

“Que o caminho seja brando a teus pés,

Que o vento sopre leve em teus ombros;

Que o sol brilhe cálido sobre tua face;

Que as chuvas caiem serenas em teus campos.

E até que eu de novo te veja,

Que Deus te guarde na palma de suas mãos!” 

o O o

 

Treze anos depois de eu escrever este artigo, em 3 de Dezembro de 2022, minha irmã Priscila de Campos Chaves me enviou a bênção abaixo, que parece ser uma versão mais completa da Bênção Irlandesa que a Sueli e o Rubem Alves me enviaram (a segunda estrofe é basicamente a mesma). Transcrevo-a, fazendo pequenos ajustes no texto:

“Que o caminho seja brando a teus pés,

Que o vento sopre leve em teus ombros.

Que o sol brilhe cálido sobre tua face,

Que as chuvas caiam serenas em teus campos.

E, até que eu de novo te veja,

Que Deus te guarde na palma de suas mãos!

 

Que a estrada abra à tua frente,

Que o vento sopre levemente em tuas costas,

Que o sol brilhe morno em e suave em tua face,

Que a chuva caia de mansinho em teus campos.

E, até que de novo nos encontremos,

Que Deus te guarde na palma das suas mãos!

 

Que as gotas da chuva molhem suavemente o teu rosto,

Que o vento suave refresque o teu espírito,

Que o Sol ilumine teu coração,

Que as tarefas do dia não sejam um peso nos teus ombros.

E, até que nos vejamos uma vez mais,

Que Deus te envolva no manto do seu amor!”

 
Em São Paulo, 13 de Novembro de 2009; revisado e ampliado em Salto, 3 de Dezembro de 2022.

Ponderação Referente à Eleição do Dia 2.10

Considere isto… 

Há gente boa e honesta, que não guardaria como seu um real que encontrasse no chão se conseguisse identificar o dono… Que não deixa o filho guardar como se fosse seu um brinquedo que o amiguinho esqueceu eu sua casa… E QUE, NO ENTANTO, ESTÁ CONSIDERANDO VOTAR PARA DAR (DE NOVO) A CHAVE DO COFRE DO BRASIL PARA UM CORRUPTO CONDENADO DIVERSAS VEZES POR LADROAGEM — NÃO HÁ OUTRO NOME PARA O QUE ELE FEZ.

Fico imaginando como essa gente boa e honesta resolve essa contradição: a incompatibilidade entre suas ideias e seu comportamento, no plano pessoal, com a possibilidade de um voto tão descompromissado com os valores que ela mesma exemplifica, pratica, defende, procura ensinar aos seus filhos. Essa é uma séria contradição que, a se confirmar, vai acompanhar você pelo resto da vida. Vai fazer com que você se torne um mau exemplo para seus filhos. No fundo de sua alma você se sentirá sempre uma pessoa envergonhada. Na hora de dormir você vai se perguntar: “Como é que eu pude fazer uma coisa dessas?”

Não tente argumentar que o outro candidato também é corrupto, porque isso não é verdade — e você sabe. Nem nas pequenas coisas. Os presidentes do PT sempre, quando viajaram, se hospedaram nos hotéis mais luxuosos. O atual presidente foi para Londres, com sua mulher, e se hospedou na Embaixada Brasileira…

Pense e deixe sua consciência falar. Dê, na urna, um voto HONESTO E COERENTE — coerente com a sua vida, porque SUA VIDA tem sido honesta, mas a do candidato em quem você está considerando votar, NÃO TEM SIDO NEM UM POUCO HONESTA. Ele foi apenas “despresado” (estava preso e foi solto), mas não foi inocentado.

Não coloque mais uma vez uma raposa como chefe do galinheiro. Pense. Reflita. Ore, se você tem fé. E aja conforme lhe dita a sua consciência.

Eduardo CHAVES
26 de Setembro de 2022

“O Povo Unido…”

“O POVO UNIDO…” [TRANSCRIÇÃO]

NOTA:

Transcrevo, a seguir, três artigos de blog publicados originalmente em meu blog Liberal Space.

Primeiro, transcrevo um artigo antigo do meu saudoso amigo Rubem Alves, com o título que estou dando a esta transcrição: “O Povo”. Inicialmente, não fiz nenhum comentário ao artigo do Rubem. Ele originalmente apareceu no seguinte URL: https://liberal.space/2010/10/09/o-povo/ .

Segundo, um comentário (“Primeiro Comentário”) ao artigo do Rubem, feito por Jaime Balbino, e minha resposta ao Jaime Balbino. O comentário e a resposta apareceram, originalmente, no seguinte URL: https://liberal.space/2010/10/10/o-comentario-de-jaime-balbino/ .

Terceiro, um outro comentário (“Segundo Comentário”) ao artigo do Rubem, feito por Guilherme Wagner Ribeiro, e minha resposta ao Guilherme Ribeiro. O comentário e a resposta apareceram, originalmente, no seguinte URL: https://liberal.space/2010/10/11/o-comentrio-de-guilherme-ribeiro/ .

Exceto por esta nota, escrita por mim em Salto, em 17 de Agosto de 2022, nada do que está transcrito aqui é de hoje. Tudo foi escrito em 9, 10, e 11 de Outubro de 2010, respectivamente – quase doze anos atrás. Mas o conteúdo da matéria continua a ser tão atual hoje quanto era em 2010 — talvez mais!

————————–

Um artigo antigo do Rubem Alves, para que a gente reflita, nesses tempos de demagogia.

————————–

[O Artigo Original]

“O Povo”

Rubem Alves

“Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece” (Friedrich Nietzsche).

É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Albert Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega:

“Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos”. Tardiamente: na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre o que me calei: “O povo unido jamais será vencido”, é disso que eu tenho medo. Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o “povo” tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio…

O fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere. A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos. E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou. Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos. E o que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será minha para sempre.”

Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus: Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade é amarga.

Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos.

Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro O Homem Moral e a Sociedade Imoral, observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis” por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.

Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem apenas quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras… O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás (para ser libertado). Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos e matava cãezinhos a pauladas na rua, em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar… O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o seu Führer.

O povo, unido, jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol. Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos e a brincar de “boca-de-forno”, à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhando e cantando e seguindo a canção.” Isso é tarefa para os artistas e educadores. O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.

————————–

Publicado em São Paulo, 9 de Outubro de 2010, no meu blog Liberal Space, no seguinte URL: https://liberal.space/2010/10/09/o-povo/ .

————————–

[O Primeiro Comentário]

Jaime Balbino respondeu à minha transcrição de um artigo antigo do Rubem Alves dizendo:

—-Início da Transcrição—–

Lamento Chaves, mas são textos assim que me fazem gostar cada vez menos de Rubem Alvez [sic]. Que aliás foi meu professor. [Balbino deve ter sido mau aluno: não aprendeu a escrever o sobrenome do professor…] Por exemplo, dizer que “o nazismo era um movimento popular” é de uma simplicidade retórica infantil que só se justifica em um texto raso, feito para a massa menos crítica que “se deixa levar pelos produtores de imagens”, como ele próprio admite em seu texto. É desse jeito que o Prof. Rubens [sic] quer despertar consicência? [O primeiro nome do homem é RubeM.] Fosse para realmente discutir democracia poderia o autor questionar para que 10 Leis se lhes foi dado o Livre Arbítrio, a esse povo judeu tão desobediente (lembrando que o Deus do 1o Testamento é só deles). Discurso fácil para justificar a máxima de Pelé: “Brasileiro não sabe votar”. Então que volte a ditadura. E que essa próxima seja mais teológica.

Abraço.

Balbino.

—-Fim da Transcrição e Comentário Meu—–

Não tenho procuração para defender o Rubem, nem ele precisa de defensores, sendo mais do que capaz de defender a si próprio. Mas acho que ele merece uma defesa minha, porque o ataque a ele foi feito no meu blog e ele dificilmente lerá o comentário feito aqui. O objeto do medo do Rubem é um slogan, uma palavra de ordem: “O povo unido jamais será vencido”. Por que o Rubem tem medo desse slogan? Porque o Rubem é uma minoria: um intelectual de gostos refinados, que, em regra, não encontram guarida no povo. Se o povo, unido, jamais será vencido, e o povo se unir para proibir as minorias de fruir daquilo que lhes dá satisfação, e as obrigar a participar daquilo que ele, povo, gosta, e elas, as minorias, não, então o Rubem está perdido – a menos que…

Tem razão, portanto, o Rubem de temer o slogan. O Rubem nos diz que ele gosta, por exemplo, de “Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio” e não gosta de “churrasco, de rock, de música sertaneja, de futebol” – e, posso acrescentar, de Carnaval e outras coisas barulhentas e que se desfrutam em grandes multidões… Se alguém com grande poder persuasório ou força política resolver unir o povo contra indivíduos com gostos como os do Rubem, e esse povo não puder ser vencido, esses indivíduos não têm saída, estão perdidos… – a menos que…

Usei duas vezes a expressão “a menos que…” A menos que o quê? A menos que o Rubem e outras minorias como ele vivam em uma democracia liberal que possua uma constituição com cláusulas pétreas, imutáveis, que nenhuma lei possa violar, suspender, limitar ou restringir, garantindo direitos e liberdades individuais básicos para todos, e deixando claro que esses direitos e liberdades não poderão ser violados nem mesmo por uma lei que tenha o apoio de todo o povo, unido, menos uma pessoa. Esses direitos e liberdades não podem ser violados nem mesmo pela Suprema Corte (Supremo Tribunal Federal), cuja obrigação primeira é fazer com que sejam respeitados por todos, inclusive por ela, a Corte, e cada um de seus membros.

São estes os direitos e liberdades em questão:

• o direito sobre a própria pessoa e sua integridade e segurança, que inclui o direito de dispor sobre a própria pessoa e o próprio corpo de qualquer forma, inclusive pondo fim à própria vida ou vendendo-se como escravo;

• a liberdade de expressar sem qualquer restrição o que pensam (respondendo, a posteriori, pelo que disserem, quando houver calúnia, injúria e difamação);

• a liberdade de ir e vir sem restrição ou coação, dentro do território, para fora dele ou de volta para ele;

• a liberdade de se associar com quem quiserem e de não se associar com quem não quiserem, de forma tácita ou através de contratos explícitos;

• a liberdade de trabalhar no que desejarem e de fazer o que quiserem com o fruto desse trabalho;

• a liberdade de buscar a felicidade como houverem por bem (desde que direitos e liberdades de terceiros não sejam violados), ainda que isso implique viver, expressar-se e agir de forma inusitada, incomum, exótica e impopular.

O povo unido pode, sim, ser vencido. É a lei que impede o povo, ainda que unido, de vencer, quando a ação do povo se volta contra os direitos e as liberdades das minorias. Numa democracia liberal fundada nos direitos e nas liberdades individuais, a lei impede o povo até mesmo de linchar um criminoso, ainda que este tenha sido pego ou preso em flagrante delito.

Quanto aos pontos secundários. Não há dúvida de que muitas pessoas não sabem votar. Caso prova fosse necessária, os votos dados ao Tiririca e a muitos fichas-sujas (por corrupção e roubalheira, especialmente, na última eleição, são prova disso. Mas isso não quer dizer que essas pessoas não tenham o direito de votar – SE os direitos e as liberdades das minorias estiverem devidamente resguardados. (Sou a favor de que ninguém tenha a obrigação ou o dever de votar – só o direito).

Assim, o Rubem não está propondo ditadura, militar ou civil, secular ou religiosa, para protegê-lo do povo, unido ou desunido. Está, simplesmente, defendendo seus direitos de minoria – algo que não é feito em ditaduras, mas, sim, em democracias liberais constitucionais fundadas em cima da inalienabilidade e inviolabilidade dos direitos e das liberdades básicas de cada um e de todos.

Por fim, o Nazismo era um movimento político popular, sim, não no sentido que tenha se originado no povo (embora até aqui seja possível argumentar) mas porque, a partir de um determinado momento, contou com enorme apoio popular. O povo delirava com os discursos de Hitler.

O perigo das ditaduras, ainda que originadas em voto democrático, está em que elas normalmente abolem as garantias dos direitos e das liberdades individuais. Daí podem agir sem maiores restrições. E a primeira liberdade que as ditaduras em geral abolem é a liberdade de expressão, em especial a liberdade de imprensa e das demais mídias. É por isso que todo ditador (ou aprendiz de ditador) dá prioridade a medidas que restringem a atuação da imprensa e das demais mídias, tentando-as subordiná-las ao controle do governo (controle esse eufemisticamente designado de “controle social”, o processo sendo chamado de “democratização da mídia”). Hitler fez isso. Chavez está fazendo isso. Os irmãos Castro sempre fizeram isso. A Coréia do Norte faz isso. A China continua a controlar a Internet e as demais mídias. Nossos aprendizes de ditadores aqui estão tentando controlar as mídias o tempo todo.

No caso do Nazismo, o resultado da eliminação das garantias aos direitos e liberdades das minorias foi o assassinato de cerca de seis milhões de Judeus e a morte de muitas outras pessoas. Não nos esqueçamos de que os Judeus eram uma minoria na Alemanha.

————————–

Publicado em São Paulo, 10 de Outubro de 2010 (10 de 10 de 10), no meu blog Liberal Space, tanto o comentário quanto a resposta, no URL: https://liberal.space/2010/10/10/o-comentario-de-jaime-balbino/.

————————–

[O Segundo Comentário]

Guilherme Wagner Ribeiro disse, em comentário ao post “O povo unido…” (e, presumo, à minha resposta a um comentário anterior no post “O Comentário de Jaime Balbino”):

—-Início da Transcrição—–

Prof. Eduardo, Mas, quem é, para o Rubem, o povo? Há uma noção preconceituosa de povo no texto, de quem queima instrumentos musicais. Por que não reconhecer também que é o povo quem os toca, os inventa. E não há espaço para gostos como Bach na noção de povo? Por que não? O povo que eu amo é uma realidade, que tem esperança e que pode aprender a respeitar os direitos humanos.

Um abraço,

Guilherme.

—-Fim da Transcrição e Comentário Meu—–

Concordo com você, Guilherme, que o artigo do Rubem Alves evidencia um certo tom preconceituoso – talvez elitista fosse um melhor termo para descrevê-lo. Há um certo sentido do termo em que todos somos povo, não é verdade? Quando os Presidentes da República à moda antiga diziam “Povo Brasileiro” todos nós estávamos incluídos. A dicotomia ali era entre o governo e o povo, entre os que governam e os que são governados. O Rubem Alves, você, eu, todos somos povo nesse sentido.

Mas a palavra “povo” tem outros sentidos. Em um deles, o povo se contrapõe não só ao governo (elite política), mas também às elites econômicas e principalmente culturais. Lulla, por exemplo, é, hoje, elite política e elite econômica (está, pelo que consta, podre de rico). Mas culturalmente é povo, nesse sentido, apesar de presidente (por enquanto) e rico. FHC, quando presidente, era membro das três elites: política, econômica e cultural. A elite, quando usa o termo “povo” nesse sentido, geralmente reflete um certo preconceito – o mesmo preconceito que o povo demonstra quando fala das elites. O próprio Lulla, que é elite em vários sentidos, menos o cultural, tem preconceito ao falar da elite cultural. Ele tende a achar que aquela cultura que ele não tem, e que a elite cultural exibe, é perfeitamente dispensável e sem valor. É como se dissesse: “Vejam até onde eu cheguei sem a cultura que a elite cultural exibe”. Dá um péssimo exemplo para os alunos de nossas escolas. Não resta dúvida de que todos nós temos nossos gostos e preferências, em especial no tocante à forma de viver e à arte.

O Rubem confessa alguns dos seus gostos e preferências: “Tenho vários gostos que não são populares [populares = do povo]. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos [de elite]. Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol.”

Eu pertenço à mesma classe social do Rubem e tenho nível cultural equivalente. Gosto de Bach e de Brahms, mas não acho muita graça em Fernando Pessoa, Nietzsche e Saramago. Como ele, gosto muito de silêncio – detesto barulho, zoeira. Gosto de churrasco (i.e., da carne) em determinados lugares (Baby Beef, por exemplo), mas detesto churrascarias (mesmo as mais chiques, como Fogo de Chão) e apenas suporto esses eventos familiares (amigos incluídos) também denominados de churrascos (melhor seria denominá-los churrascadas). Não gosto de concertos de rock, mas gosto de alguns tipos mais soft ou light de músicas denominadas rock. Gosto de alguns tipos de música sertaneja (mas não de ir aos shows) e gosto de futebol (mas não gosto muito de ir a campo de futebol, embora vá, quando o glorioso SPFC está disputando um título). A razão principal pela qual não gosto de concertos de rock, shows de música sertaneja, e jogos de futebol está no fato de que geralmente são grandes agrupamentos de gente (de povo?).

Concordo com o Rubem que: “Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival.”

E concordo ainda mais com ele quando diz: “Somente os indivíduos pensam”.

Grupos não pensam. Podemos nos beneficiar, e de fato nos beneficiamos o tempo todo, do pensamento de outros indivíduos. Acho que é até possível falar, como o faz Pierre Lévy, em “Inteligência Coletiva”. A Inteligência Coletiva é o produto das inteligências individuais em interação. Mas somente indivíduos pensam. O povo não pensa. Em grandes ajuntamentos, como os que se fazem à porta das delegacias e dos tribunais, quando os Nardonis e o Bruno (goleiro do Flamento) vão dar depoimento ou ser julgados, se alguém gritar “Lincha”, o povo enfrenta a polícia, arrebenta as portas, e tenta linchar os acusados. Torcidas uniformizadas cometem as maiores atrocidades contra o “inimigo”. Matam torcedores indefesos que estejam com o uniforme do outro time. Num jogo de futebol, inflamado pelo espírito de grupo, um jogador pode quebrar a perna de outro que, fora do campo, era seu amigo…

O resultado desses fatos – que me parecem inegáveis – é que um bom orador, que fala a linguagem do povo, como Hitler, na Alemanha, nos anos 30 e 40 do século passado, e Lulla, no Brasil, hoje, consegue manipular o povo e fazer com que o povo faça o que sugere, sem pensar… Se Mao Zedong mandava queimar violinos, porque eram instrumentos favorecidos pela elite, o povo fazia isso – como, hoje e aqui, quebra os trens e queima os ônibus que vão lhes fazer falta no dia seguinte, se uma liderança emergencial grita “Quebra!” Se o Lulla manda votar na Dilma, o povo vota. Sem pensar. O ditador Getúlio Vargas, através de sua poderosa assessoria de comunicação, se rotulou “Pai dos Pobres”. A propaganda da Dilma sugere que Lulla é pai, e Dilma seria a mãe, do Brasil…

Isso é tentativa clara de manipular o povo. Os argentinos tinham um pai em Perón e uma mãe em Evita. Aceitaram até a Isabelita como uma segunda mãe… O Kirchner conseguiu eleger a Christina. O Roriz está tentando eleger a Wesleian. Tudo por quê? Porque o povo não pensa… É preciso muito esforço para “despertar a consciência” do povo (para usar a expressão que o Balbino usou no primeiro comentário). Mas alguma coisa aconteceu nos dias que antecederam ao primeiro turno das eleições que levaram o povo a parar e pensar: “Epa, acho que é bom ganhar um tempo mais para pensar, para ver e ouvir novos debates, para conversar…” O resultado? Um Lulla irado, que sumiu por três dias, e que deixou sua “mulher” com cara inchada de choro explicar por que não havia ganho a eleição no primeiro turno… Os analistas não sabem se foi a corrupção deslavada na Casa Civil, ou o aborto… ou aquela sensação indigesta que a gente às vezes tem de que estão nos enrolando, estão tentando enfiar alguma coisa goela abaixo que tem um gosto meio ruim… Sei que estou mexendo em vespeiro, mas é isso aí.

————————–

Publicado em São Paulo, 11 de outubro de 2010, no meu blog Liberal Space, tanto o comentário quanto a resposta, no URL: https://liberal.space/2010/10/11/o-comentrio-de-guilherme-ribeiro/

————————–

O todo, com suas três partes, foi transcrito aqui em Salto, 17 de Agosto de 2022, neste URL: https://liberal.space/2022/08/17/o-povo-unido/ .

O que Significa “Ser de Direita” Hoje no Brasil

Vi ontem um videozinho do Luiz Felipe Pondé, discorrendo sobre o que significa “ser de direita” na Universidade hoje. Embora concorde, em grande parte com ele, resolvi escrever sobre o meu ponto de vista acerca do assunto — sem tocar na questão da Universidade, que, para mim, são águas passadas. Faz 15 anos que me aposentei da UNICAMP e posso contar nos dedos as vezes que voltei lá. Vou discutir, portanto, o que significa ser de direita no Brasil hoje. Concordo basicamente com o Pondé na tese de que ser de direita no Brasil de hoje é ser liberal clássico, defender direitos e liberdades individuais, um estado mínimo, e, por conseguinte, a economia de mercado. Sei que há gente que discorda, dando ênfase ao papel de uma “direita cultural” e a “pauta de costumes” (sexo, aborto, etc.). Acredito, como liberal (mais do que isso, vejo-me hoje bem mais próximo do libertarianismo anárquico) na liberdade das pessoas de serem o que desejam ser — mas detesto a criação de causas e movimentos e o proselitismo que essas causas e esses movimentos fatalmente implicam. Mais sobre isso depois.

O que significa ser “de direita” no Brasil de hoje?

  1. Ser “de direita” significa, no Brasil de hoje, em primeiro lugar, numa tese negativa, “não ser de esquerda”. Muita gente não gosta de teses negativas, mas neste caso é apropriado. Boa parte dos brasileiros que se definiu como de direita o fez para marcar posição contra o petismo e os seus petralhistas. Mas reconheço que dizer que ser de direita é não ser de esquerda me obriga a definir, em seguida, o que é ser de esquerda. Não deixarei de fazer isso, como vai ficar claro em seguida.
  2. Ser “de direita” significa, no Brasil de hoje, agora numa tese positiva, considerar sempre o Indivíduo como o elemento mais fundamental nos binômios “Indivíduo e Sociedade”, “Indivíduo e Estado”. A sociedade é composta de indivíduos e não tem existência sem eles. Ela não é um ente platônico que tem existência, direitos, opiniões, voz, etc. à parte dos indivíduos que a compõem. E o estado é uma criação dos indivíduos. É difícil imaginar e crer que tenha havido uma sociedade de indivíduos sem nenhum mecanismo de governança, a chamada “sociedade natural” (erroneamente chamada de “estado natural”, a menos que o termo “estado” signifique apenas “condição”, sem um sentido mais técnico). E difícil imaginar que esses indivíduos tenham se reunido e poderado: “Oi galera, a gente tem brigado muito, vamos criar um estado, botar o Sarney na presidência, e ele cria um congresso para fazer umas leis e um tribunal para decidir quem violou as leis, etc.”. É bem mais provável que as coisas tenham acontecido de modo mais natural, espontâneo, e, em retrospectiva, se invento o mito do “contrato social”.
  3. Considerar o indivíduo o elemento mais fundamental significa nos conflitos inevitáveis que vão surgir entre o indivíduo e a sociedade e o indivíduo e o estado, nossa solidariedade primeira deve estar com o indivíduo. Ele é um — a sociedade são muitos, e o estado representa muitos, pois doutra forma não seria estado, a não ser pelo uso de uma força tão extrema que poria todo mundo contra ele. Isso significa, portanto, que quando falamos em direitos, a saber, o direito de expressar (tanto o seu pensamento como as suas emoções e a sua forma de ser), o direito de ir e vir (tanto dentro do país, como pra fora e pra dentro do país), o direito de se organizar e se associar em grupos ou se associar a grupos para fins lícitos, o direito de possuir bens e propriedades (tanto de bens tangíveis como intangíveis, tanto de propriedades materiais como imateriais), é de direitos de indivíduos, de direitos de pessoas humanas vistas como indivíduos, não de direitos de blocos ou grupos de pessoas, que estamos falando, e que esses direitos devem prevalecer contra a força, o poder e a autoridade da sociedade e do estado. E que, quando os direitos de indivíduos conflitarem uns com os direitos de outros indivíduos, deve haver meios pacíficos e com autoridade moral e de fato para decidir quais direitos prevalecem.
  4. Isso significa, portanto, que uma sociedade organizada com base na primazia dos direitos individuais, esses direitos devem ter primazia, não só com base em princípios utilitários (como se verá) mas, e principalmente, com base em princípios morais. O princípio da maioria pode ser útil para decidir quem vai governar, mas, mesmo neste caso, deve haver previsão para remover maus governantes de forma indolor, e, isso, quando prevaricam, ou por pura incompetência, ou pela prática deliberada de atos imorais — porque não sabem o que fazer ou por escolherem fazer o que não é certo. Até aí a moralidade se aplica, e ela é inerente aos indivíduos, as ações individuais. É preciso considerar sempre o Indivíduo o elemento mais fundamental. Ninguém deve ser exculpado em um linchamento alegando que, “bem todo mundo estava batendo nele, e então eu também fui lá e dei umas porradinhas…”.
  5. Toda essa conversa de “direito individual” como sendo “natural”, “inalienável”, surgiu porque se acredita que haja uma “lei natural”, que se aplica ao ser humano, independentemente de qualquer sociedade em que ele viva, em qualquer época histórica. É ela a base da moralidade, e é ela que torna certos atos individuais imorais independentemente de tempo ou lugar. É por isso que a maior parte dos liberais clássicos não acredita que direitos individuais sejam direitos outorgados por uma sociedade ou por um estado. Para ele à sociedade e ao estado só cabe reconhecê-los e fazer valer esse reconhecimento (até, agora, no caso do estado, pelo uso da força, que só pode ser aplicada para impedir ou corrigir uma injustiça).
  6. Mas o apelo a princípios utilitários também é válido, porque a experiência mostra e a história prova que uma sociedade que protege os direitos e as liberdades de cada um e que, não interferindo com o direito dos indivíduos de viver a sua vida como desejam e de desfrutar de suas liberdades, sem impedimentos, desde que estejam respeitando iguais direitos e liberdades dos demais, é uma sociedade não só mais justa, mas que produz mais e distribui melhor os bens e serviços produzidos, satisfazendo os interesses e as necessidades da maioria das pessoas.
  7. Isso significa, portanto, que a sociedade e o estado não devem nada aos indivíduos a não ser o respeito e a proteção aos seus direitos e às suas liberdades, e que a única forma legítima de os indivíduos alcançarem realização pessoal, felicidade, sucesso material e fama é respeitando esses direitos dos demais e tendo clareza sobre os seus objetivos e metas na vida (Projeto de Vida).
  8. Isso significa, também, que o estado não deve ser maior do que é estritamente preciso. Como sua função é exclusivamente respeitar e proteger direitos individuais, não estão entre suas funções garantir o bem-estar dos indivíduos em sociedade, oferecendo-lhes educação, saúde, seguridade social, muito menos moradia, emprego, esgoto, água tratada, energia, Internet, etc. Quando o estado já está exercendo essas funções, é preciso privatizá-las.
  9. Os limites extremos são individualismo anárquico, do lado direito, sem governo algum, e comunismo totalitário, condição em que o estado é tudo.
  10. Recomendaria que abandonássemos os termos “direita” e “esquerda” e nos concentrássemos nas questões fundamentais: defende o crescimento e fortalecimento de quem? Do indivíduo e das associações privadas? Em caso positivo, é dos meus. Do estado e das organizações estatais, para-estatais, etc.? Em caso positivo, não é dos meus: considero meu adversário político e vou lutar para que não prevaleça.

É só nesse sentido que se pode dizer que sou direita. A pauta cultural ou dos costumes literalmente não me incomoda. A mim não incomoda que alguém seja gay, ou bi, ou trans, que viva com alguém do mesmo sexo (ou até com mais de um), nem mesmo que faça um aborto de uma gravidez indesejável iniciante (não vejo diferença entre fazer sexo com camisinha, ou com coitus interruptus, e usar a pílula do dia seguinte: nesse aspecto sou católico, é tudo a mesma coisa) — desde que não se tente obrigar ou mesmo a constranger os outros a fazer a mesma coisa. Mas, na questão do aborto, chega uma hora é que se torna assassinato — e essa é hora é muito antes do nascimento. Isso é parte dos direitos individuais. É difícil de resolver em casos particulares? Sim, é difícil. Como é difícil fazer a coisa certa em muitas outras circunstâncias. Mas é a consciência moral de cada um (de cada indivíduo) que deve resolver. Não é a igreja ou o partido político.

Em Salto, 13 de Maio de 2022. Dia da Libertação dos Escravos.

A Liberdade

Post com três componentes: um meu (o do meio) e dois de autores portugueses.

.
1. Artigo de José Manuel Fernandes, do jornal (na verdade, meio de comunicação) português Observador, sobre o dia 25 de Abril lusitano — o “Dia da Liberdade Readquirida”, recebido, por email, do autor (que não encontrei, enquanto tal, no site da publicação):

A minha reflexão sobre o 25 de abril

“Caro leitor,

‘Quando encontramos pessoas que constituem uma excepção à aparente unanimidade do mundo a respeito de um assunto qualquer, mesmo que o mundo esteja certo é provável que os dissidentes tenham alguma coisa a dizer que vale a pena ouvir e que a verdade perca algo com o seu silêncio’.

Estas palavras foram escritas por John Stuart Mill, um dos filósofos da liberdade, há mais de 150 anos mas continuam muito actuais, tão actuais que as recordo agora que passa mais um aniversário do 25 de Abril – o 48º.

Mais um aniversário e mais uma oportunidade para recordar que liberdade é liberdade e que isso muitas vezes parece contrariar a vontade da maioria. Para recordar também que a liberdade reconquistada nesse dia não vinha com outro programa político senão o de devolver aos portugueses a palavra sobre o seu destino.

No Observador levamos muito sério esta ideia de liberdade – a ideia de que ela naturalmente contraria a unanimidade, até porque a minoria de hoje pode ser a maioria de amanhã. E que todas as vozes têm direito a exprimir-se, até para discordarmos delas.

Num tempo em que a cultura de cancelamento ameaça a liberdade de expressão, numa era em que regressam discursos autoritários, num país onde muitas vezes há receio de discordar e de divergir, o Observador procura a verdade com a noção de só pode fazê-lo se quebrar silêncios e interditos.

É uma missão em que nos empenhamos há quase oito anos (vamos celebrar em Maio o nosso oitavo aniversário), é uma missão de enorme urgência nestes tempos aflitivos e de guerra, é uma missão só possível de levar por diante com os nossos leitores (e ouvintes da Rádio Observador) e sobretudo com os nossos assinantes.

É também a eles que agradecemos em mais este aniversário da liberdade readquirida.”

José Manuel Fernandes
Publisher do Observador

.
2. Meu Comentário
(de Eduardo Chaves), a seguir:

A lição de John Stuart Mill é que a liberdade seria fácil de exercer, e dificilmente seria reprimida, se nós apenas a utilizássemos para dizer aquilo com que todo mundo está de acordo. Mas ela precisa ser exercida, e não deve nunca ser reprimida, quando se trata da voz de um que clama sozinho num deserto intelectual, quando se trata da voz das minorias e dos minoritários. O democracia liberal não implica apenas a tomada de decisão pela maioria. Implica isso, mas também exige a preservação do direito das minorias, ainda que de um só, de externar o seu ponto de vista, de dizer e defender o seu ponto de vista, ainda que ele seja, mais do que apenas discordante, desagradável e ofensivo. Se quem foi ofendido julga que a ofensa é mentirosa e lhe causa dano (material ou à honra e a reputação), pode apelar à Justiça. Mas esse é um direito individual e nominado. Não se aplica à própria Justiça à qual cabe apurar se houve dano. Primeiro, porque a Justiça, ou qualquer tribunal, não é um indivíduo, que é o senhor dos direitos individuais. Segundo, porque, ainda que ela assim fosse considerada, ela estaria julgando em causa própria, o que é sempre inadmissível. Nos julgamentos colegiados, juízes que estejam direta ou indiretamente envolvidos, têm de se declarar incapazes de julgar, por falta de objetividade — princípio que, no Brasil foi julgado no lixo pelos membros do nosso tribunal maior.

Está na hora de lutar para recuperar as liberdades que estamos perdendo. É fácil perdê-las: é só não fazer nada que os ladrões da liberdade nô-la roubam e a levam embora.

.
3. Artigo publicado também no Observador, de autoria de João Marecos, com o título A Liberdade da Expressão que Ofende (este disponível no site no endereço https://observador.pt/opiniao/a-liberdade-da-expressao-que-ofende/ (06 fev 2018, 06:0018). Ei-lo:

“As redes sociais, este paraíso de comunicação livre, tem vindo a tornar-se num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto.

Nunca conheci quem não fosse pela liberdade de expressão, a começar pela sua. Ainda que naturalmente limitada – a difamação, a injúria, o incitamento à violência ou à fraude, por exemplo, são crimes previstos na lei penal -, não restam dúvidas de que é absolutamente central em qualquer sociedade que se queira dizer livre.

Mas para que serve a liberdade de expressão? Por exemplo: posso defender que a cor da pele determina a capacidade intelectual de uma pessoa? Posso acreditar que um género é biologicamente inferior ao outro? Posso mentir sobre mim? Posso mentir sobre os outros? Posso dar opiniões com base em factos falsos? Posso defender realidades que a ciência atual rejeita?

Tudo isto são formas de expressão que, com grandes diferenças de grau – eu sei que estou a misturar muita coisa diferente – reputamos como de menor ou nenhum valor: mentiras, insultos, discurso de ódio, discriminação. E, ainda assim, a questão põe-se: se eu sou verdadeiramente livre para me expressar – se tenho um direito à liberdade de expressão -, não poderei ser racista? Não poderei ser machista? Não poderei ser mentiroso?

Como é, afinal: toleramos o discurso intolerante?

Vamos imaginar que dizemos coletivamente que não: não, o direito à liberdade de expressão não inclui estes discursos ofensivos, vis ou de menor valor. É um conforto: limpamos o espaço público deste tipo de intervenções e passamos a viver num lugar mais asseado.

Ficamos então com o que sobra: o que não ofende, o que não exclui, o que é verdadeiro. Mas quem define o que é ofensivo? Quem define o que é verdadeiro? A maioria? É uma hipótese. Afinal, em democracia, vinga a maioria.

Contudo, a maioria não é estanque. A maioria muda, evolui. E a verdade que aceitamos hoje é a mentira ofensiva de amanhã. Antes, a Terra era plana e as mulheres não votavam. Ai de quem viesse defender o contrário: fogueira com eles. Hoje, rimos com gosto e incredulidade, porque anda por aí um movimento que defende que a Terra é plana e erguemo-nos contra as desigualdades de género. E ainda bem: chegámos a um sítio melhor. Mas precisámos de quem contrariasse a maioria. Precisámos de dar espaço a todo o tipo de discurso, para que do confronto entre duas mundividências resultasse a melhor.

Vem-me tudo isto a propósito deste admirável novo mundo das redes sociais: o paraíso da comunicação livre, onde todos têm uma voz, uma oportunidade de expressar os seus pontos de vista e de entrar em diálogo.

Acontece, porém, que este paraíso de comunicação livre se tem vindo a tornar, progressivamente, num espaço de expressão governado por uma ditadura da maioria – aquilo a que se usa chamar o politicamente correto – onde se põe em causa não só o que foi dito pelo outro, mas o próprio direito do outro a dizê-lo.

O politicamente correto é, no fundo, um manual de regras para uma expressão higienizada. Regula-nos o conteúdo, a forma, o tempo e o meio da expressão.

Há palavras que não se podem usar nunca. Outras que não se podem usar com certas pessoas. Outras que não se podem usar em certas situações. Há coisas que não se dizem. Há momentos para dizer as coisas. Há palavras que podem ser ditas por uns, mas não podem ser ditas por outros. Há coisas com que não se brincam. Há brincadeiras que não são para agora. Há conversas que não se têm. Esta não é a altura certa. Isso não vem a propósito. Isso não se diz. Isso não se faz. Isso não se pensa.

O politicamente correto apresenta-se de cara lavada e com boas intenções: pretende defender os outros da ofensa, do mau trato, da discriminação. Tem, contudo, a perversidade de nos tornar polícias do discurso, dos outros e do nosso, que monitorizamos selvaticamente em busca de transgressões expressivas. E assenta, sobretudo, num engano generalizado e perigoso: o de que o espaço público de expressão não permite a expressão que ofende, que discrimina, que é falsa ou de que simplesmente não gostamos.

Ora, isso não é verdade: nem nós temos autoridade para dizer ao outro o que ele pode ou não pode dizer – insultando-o e perseguindo-o até ele se calar -, nem temos qualquer pretensão a que o discurso dos outros não magoe os nossos sentimentos, ofenda as nossas crenças ou, de um modo geral, nos provoque qualquer alteração negativa de estado de espírito.

O que me leva à questão com que comecei: para que serve a liberdade de expressão? Porque é que a Constituição – a nossa e muitas outras – fez questão de assegurar esse direito? Será que era preciso garanti-lo para proteger as opiniões maioritárias? Para permitir o discurso que não causa desconforto a ninguém? Para afirmar verdades universais e pacíficas?

Faria pouco sentido. Não: o direito à liberdade de expressão serve precisamente para proteger a liberdade, nossa e dos outros, de nos expressarmos, mesmo – ou sobretudo – quando essa expressão é incómoda. Não é grande feito reconhecer ao outro a liberdade de me tratar bem, de concordar comigo ou, no geral, de ser uma pessoa decente. O que precisa de defesa é a expressão que desagrada, a opinião que incomoda, o comentário que suja ou a atitude que escandaliza.

A liberdade de expressão serve para proteger aquilo que nós não gostamos que os outros digam, façam ou pensem. O racista pode ser racista. O homofóbico pode ser homofóbico. O mentiroso pode ser mentiroso. E toda a gente pode ter opiniões insultuosas e sem sentido.

É uma pena que existam? Será. Pessoalmente, acho lamentável. Mas não me cabe a mim proibi-los: cabe-me contrariá-los. É assim que funciona o jogo da livre expressão: cada um tem a sua visão e no final de uma longa, suja, incómoda e barulhenta refrega, provavelmente vai cada um à sua vida com a opinião que já tinha. Contudo, há em cada debate a pequena possibilidade de persuadirmos alguém, seja o outro ou os que assistiram. É também essa possibilidade que a liberdade de expressão quer proteger.

Nas redes sociais, como fora delas, cada um é responsável pelo que diz e justamente avaliado pelos outros em função disso. Aos racistas, aos homofóbicos, aos machistas, aos mentirosos e àqueles que estão simplesmente errados, deve responder-se sempre, incansavelmente, com discursos de sinal contrário, com argumentos, com factos e com críticas.

É através do confronto público, aceso e constante, dessas formas de expressão com as suas falhas lógicas, com os seus erros de base e com os seus preconceitos que as combatemos e derrotamos. Suprimir este tipo de discurso – proibindo-o, ostracizando-o – é escondê-lo na penumbra, é levá-lo para onde não o vemos nem o podemos criticar, mas onde ele continua a fazer o seu silencioso trabalho. Esse discurso tem direito a um espaço na discussão pública – e é só por isso que o podemos vencer.

Tolerar uma expressão não significa aceitar o seu conteúdo. Mas significa aceitar a sua existência. Da próxima vez que se escandalizar, lembre-se disso.”

[João Marecos tem 26 anos, é advogado e estudante de mestrado na New York University. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”]

.
Parabéns ao João Marecos, por escrever com tanta competência aos 26 anos.

Em Salto, 24 de Abril de 2022

Angela Merkel ou Nós, os Brasileiros: Quem Está Fora da Curva?

É a Angela Merkel ou é o Povo Brasileiro que é Sui Generis?

Faz algum tempo (18.9.2021) eu transcrevi um texto sobre Angela Merkel, que era acompanhado de uma foto dela com seu marido, saindo de um supermercado, onde foram fazer compras. O tempo parecia estar meio frio, porque ambos estavam encasacados – com roupas simples. O texto transcrito, de Oscar Bini, tem a data de 4.9.2020. O texto de Oscar Bini, que não sei quem é, mas escreve em Espanhol, destaca o seguinte, sobre a ex-Primeira Ministra (Chanceler, Kanzlerin) Alemã:  

  • Angela Merkel vive en um apartamento normal, entre vizinhos normais;
  • Angela Merkel vai ao supermercado com o marido para fazer suas compras, como qualquer pessoa;
  • Angela Merkel, como ex-Primeira Ministra, não tem um corpo de seguranças e assessores que a acompanham por todo lugar;
  • Angela Merkel não tem um (muito menos mais de um) carro oficial, com tanque cheio e com com dois ou três motorista(s), 24 horas por dia, à sua disposição;
  • Angela Merkel, quando precisase locomover, usa transporte público ou dirige, ela mesma, seu próprio carro, colocando gasolina, pagando pedágios e eventuais consertos ela mesma;
  • Angela Merkel, se cometer uma infração de trânsito ao dirigir seu veículo, paga ela mesma a multa do seu próprio bolso;
  • Angela Merkel não tem recebe do governo alemão subsídios especiais para custear sua moradia, pagar eletricidade, água, gás, telefone, Internet, muito menos algo equivalente a uma “bolsa paletó” ou uma “bolsa tailleur” para se vestir bem às custas do Estado;
  • Angela Merkel paga seus impostos como qualquer outro cidadão alemão sem privilégios e descontos especiais;
  • Angela Merkel tem os mesmos direitos e deveres de qualquer outro cidadão alemão.
  • Angela Merkel achava que, como política, sua obrigação era servir o povo alemão, não ser servida por ele.

PERGUNTO:

Angela Merkel era uma pessoa única, em seus valores e atitudes, diferente dos demais cidadãos alemães e diferente dos políticos de outros países civilizados, ou será que o povo alemão e os povo dos demais países civilizados não permite ser explorado por políticos. O certo é comparar Angela Merkel com outros políticos ou comparar o povo alemão com o povo brasileiro, que leva tudo na flauta e na brincadeira e não se importa de ser explorado, que, quem sabe, sente um prazer mórbido em reeleger políticos corruptos e ladrões?

Você, brasileiro, não elogia a Angela Merkel, uma pessoa simples e honesta? Por que, então, na hora de votar você parece esquecer que foi o povo alemão que, pelo seu voto, a colocou na liderança da nação, e cogita votar para políticos corruptos e ladrões, que entraram no governo pobres e saíram de lá biliardários? 

Em Salto, 2.2.22

Vinte Anos como Blogueiro (2002-2022)

Este ano de 2022 faz 20 anos que criei os meus primeiros blogs e os meus primeiros posts. 

Eu comecei mexer com coisas relacionadas com a Informática em 1980. Este ano está fazendo 42 anos. 

Eu havia me tornado Diretor da Faculdade de Educação em Abril de 1980. O primeiro projeto de pesquisa que assinei foi um pedido de financiamento para a FINEP para um projeto sobre o uso de computadores da Educação (na aprendizagem dos alunos, não no ensino dos professores), usando a linguagem LOGO, de autoria de Seymour Papert, já falecido, mas então um dos mais conhecidos nomes do Massachusetts Institute of Technology (MIT).  Os coordenadores eram os Professores Fernando Curado, do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação, e Raymond Paul Shepard, do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação. Li o projeto, um catatau, e me interessei pelo assunto. Fui visitar o trabalho que vinha sendo feito pelas Professoras Maria Cecília Calani e Heloísa Vieira da Rocha (hoje, aposentada, morando em Marília, na região da Grande Lucélia, cidade em que nasci…) do Departamento de Ciência da Computação. O projeto era desenvolvido no Centro de Computação e eu pela primeira vez vi um computador de porte razoável, o DEC-10, da UNICAMP, “DEC” significando “Digital Equipment Corporation”.

No ano de 1981 e no ano seguinte de 1982 houve, no mês de Agosto, dois Encontros, chamados de I e II Seminários Nacionais de Informática na Educação, o de 1981 em Brasília, o de 1982 em Salvador, patrocinados pela Secretaria Especial de Informática (SEI), vinculada ao Conselho de Segurança Nacional da Presidência da República, com apoio financeiro, técnico e logístico do Ministério da Educação (MEC), do Centro Nacional Pesquisas (CNPq), da Financiadora de Estudos e Pesquisas (FINEP), da Fundação Nacional de Televisão Educativa (FUNTEVÊ), etc. e eu, como diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP fui convidado a participar e aceitei. (Da UNICAMP participaram a Maria Cecília, já mencionada, a Afira Vianna Ripper (da Faculdade de Educação), e o Vilmar Evangelista Faria (do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, hoje falecido). Nesse encontro fiz algumas grandes amizades: o Professor Fernando José de Almeida (da Faculdade de Educação da PUC-SP), a Professora Léa da Cruz Fagundes (do Laboratório de Estudos Cognitivos da UFRGS), a professora Amélia Americano Franco Domingues de Castro (da Faculdade de Educação da USP, depois da Faculdade de Educação da UNICAMP), o professor Samuel Pfromm Neto (do Instituto de Psicologia da USP), o Professor Ivan Moura Campos (do Instituto de Computação da UFMG, da Sociedade Brasileira de Computação, e um pioneiro da área de Computação no Brasil — e um dos poucos que entendia de Computação nos Encontros), etc. Desses, que eu saiba, alguns já faleceram (Amélia, Samuel), com outros não tenho mais muito contato, com exceção do Ivan. 

Em 1981 algumas coisas me persuadiram que deveria ir mais a fundo na área de “computadores e equipamentos subsidiários” — eles não podiam ficar fora da minha vida. (A expressão entre aspas vem do nome da SUCESU – Sociedade de Usuários de Computadores e Equipamentos Subsidiários, uma sociedade que existia naquela época e nem sei se existe ainda). A UNICAMP, no final de 1981, começo de 1982, passou por uma terrível crise (ficou parada de Outubro de 1981 até Abril de 1982), eu e mais sete colegas diretores de unidades acadêmicas havíamos sido destituídos de nossos cargos de direção e, pelo andar da carruagem (a época era ainda de regime autoritário e Paulo Salim Maluf era Governador do Estado de São Paulo, que financia e controla a UNICAMP) não era inconcebível que a gente viesse a perder até o cargo de Professor da UNICAMP. Essas coisas ainda aconteciam. Diante desse quadro, perguntei-me o que eu faria de minha vida se perdesse meu emprego? Poderia arrumar outro, numa universidade particular ou “confessional”, de oposição, como a PUC-SP ou a PUC-Rio ou a PUC-Campinas. Mas além de ser professor universitário eu não sabia fazer mais nada. Resolvi, então, por sugestão de meu querido colega Maurício Prates de Campos Filho, também destituído como Diretor da Faculdade de Engenharia, que deveria me me entrar de cabeça na área de Informática. Fui à cidade, na People Computação, uma Escola de Informática criada em 1979, por Valter Balazina, matriculei-me num curso (de um ano!) de Introdução em Informática e Programação de Microcomputadores (linguagens BASIC e COBOL), e fiquei amigo do Valter e do José Antonio Ribeiro Neto, um matemático, nascido em Tupã, que era o braço direito do Valter. No início de 1982 fiz uma viagem aos Estados Unidos e comprei um Commodore 64. Nessa época comecei a trabalhar como assessor, na área Técnico-Pedagógica, da People, o Maurício Prates, o Paul Shepard, o Saul Gonçalves D’Ávila, todos colegas da UNICAMP, com a ajuda do José Eustáquio da Silveira Neto, Secretário Executivo da Fundação de Desenvolvimento da UNICAMP (FUNCAMP) criamos uma empresa de treinamento, Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico (CEDET), para da cursos em Campinas (a IBM foi a principal cliente).

Em 1983 criei na UNICAMP o Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED), que vai fazer 40 anos o ano que vem, o NIED submeteu um projeto no Edital do MEC que caiu o Projeto EDUCOM, o NIED foi um dos cinco projetos aprovados (de 26 apresentados), e eu, além de Coordenador do NIED, fui também Coordenador do Projeto EDUCOM da UNICAMP de 1983 a 1986, quando fui para a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, e depois para a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, acompanhando o ex-Reitor da UNICAMP, Professor José Aristodemo Pinotti, de 1986 até 1990. Nas duas Secretarias fui Diretor do Centro de Informações e Informática. E fui nomeado pelo Governador Orestes Quércia, por dois mandatos de um ano, membro do primeiro Conselho Estadual de Informática (CONEI) do Estado de São Paulo, nos anos 1987-1988. Em 1990 voltei para a UNICAMP, e passei a dar aulas apenas no período noturno. 

Em 1986 criei um Grupo de Discussão sobre Informática na Educação, chamado INFED-L, nos computadores da UNICAMP (agora um VAX, da DEC), que foi implodido, com a melhor das intenções, pelo meu amigo, Professor Valdemar W. Setzer, professor da USP, e também um dos pioneiros da Computação no Brasil, mas que, sendo seguidor de uma filosofia chamada Antroposofia, criada por Rudolf Steiner, e um dos líderes da Escola Waldorf de São Paulo, era o grande crítico brasileiro do uso de computadores na educação, em especial com crianças abaixo de quinze anos. Não desisti e criei outro Grupo de Discussão, o EduTec.Net, em 28.10.1998, que durou até Nine Eleven. O terrorismo islâmico e o anti-americanismo da esquerda brasileira me levaram a fecha-lo, em Setembro de 2001, quando tinha mais de 1.500 participantes regulares. Na mesma época criei o site EduTec.Net, com apoio da subsidiária brasileira da Microsoft, de quem passei a ser consultor, na área da Educação, desde 1998. 

De lá para cá, nunca mais larguei a área de Informática Aplicada à Educação, tendo me enveredado também pela área de Informática em Saúde, por causa dos quatro anos que passei na Secretaria de Saúde do Estado. Fui Pesquisador do CNPq na Escola Paulista de Medicina, durante um tempo, a convite de meu amigo Prof. Dr. Daniel Sigulem, que me incentivou a entrar na Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS) e até a ser o editor da Newsletter da SBIS…

Mas só vim a me meter com blogs em 2002. Naquele ano abri uma conta no Blogger, do Google, e criei quatro blogs:

  • Me, Myself and I: Aspectos de Mim Mesmo
  • Educação 
  • Libertas (Liberalismo)
  • Philosophy

Publiquei poucas coisas. Não estava engrenado ainda. 

Entrementes, troquei de time. A Consultoria que eu dava para a subsidiária da Microsoft no Brasil (a Microsoft Informática Ltda.) recebeu um upgrade em 2003. Por indicação de Márcia Teixeira, então Gerente Sênior de Informática na Educação da Microsoft brasileira, me tornei, em Março de 2003, membro do International Advisory Board da iniciativa global “Partners in Learning”, da Microsoft Corporation, de Redmond, WA, USA. Isso me tornou consultor também da Corp. Fui membro do International Advisory Board da iniciativa por dois mandatos seguidos de cinco anos, até 2013. 

Nessa condição, minha lealdade mudou para a Microsoft… 

Em Dezembro de 2004 estava numa reunião/treinamento, na região de Seattle, no Puget Sound Center for Teaching and Learning, com Les Foltos e Ana Teresa Ralston (que veio a substituir a Márcia Teixeira, quando esta foi promovida para os Estados Unidos). Durante a reunião Márcia Teixeira me enviou uma mensagem perguntando se eu havia visto o novo serviço de Blog da Microsoft, Windows Live Spaces. Era concorrente do Blogger. Eu não havia. Enquanto participava da reunião, entrei no site que a Márcia me havia indicado, e verifiquei o que deveria fazer para criar o meu Space. Em seguida, criei meu Space, Liberal Space (que existe até hoje, com 1.032 artigos, e coloquei nele a primeira mensagem, pequenina, apenas declarando-o aberto. Era o dia 2.12.2004.

Minha carreira como blogueiro desta vez engrenou. Tenho cerca de 50 blogs, hoje na plataforma WordPress, para a qual a Microsoft transferiu seus blogueiros em 2011. 

Mas ela começou em 2002, no Blogger. A conta no Blogger continua aberta, mas nunca mais a usei. 

Assim, comemoro, neste ano de 2022, Vinte Anos como Blogueiro. Ao todo, nos meus cerca de 50 blogs, tenho mais de 1.500 artigos publicados. O carro-chefe de meus blogs hoje é Chaves Space (https://chaves.space), no qual estou publicando este artigo. 

Em Salto, 27 de Janeiro de 2002.

Identidade Pessoal e Mudanças [versão revista de 2022]

Nossa identidade é aquilo que nos define como “eu” – que nos torna “únicos”, que faz com que eu seja eu, e não você, e você seja você, e não eu…

À primeira vista a questão pode parecer simples – mas não é, não. Pelo contrário: é bastante complicada, e já ocupou horas preciosas da reflexão de grandes pensadores…

A questão pode, naturalmente, ser encarada de diversos pontos de vista.

Encarada do ponto de vista físico e biológico – a questão pode parecer mais simples do que de outros pontos de vista (psicológico, social, intelectual [filosófico, religioso, etc.]), etc., mas mesmo aí vem se tornando cada vez mais complicada.

Dizem os entendidos que a impressão digital de uma pessoa é absolutamente única e permanece a mesma durante toda a vida dela. Com a ajuda de algumas informações complementares, a impressão digital poderia, portanto, ser usada para definir quem a pessoa é do ponto de vista físico e biológico: ela é a versão mais idosa (e, é de esperar, mais experiente) do nenê que nasceu no dia tal, a tantas horas, em tal lugar, de fulana de tal.

Mas dizem novamente os entendidos que as células de uma pessoa morrem e são substituídas por outras dentro de determinados períodos (relativamente curtos) de tempo. Assim sendo, ainda que eu tenha a mesma impressão digital do nenê Eduardo Oscar que nasceu em Lucélia, no dia 7 de Setembro de 1943, às 21h45, na Rua Amazonas s/n, de Edith de Campos, então já renomeada Edith de Campos Chaves (sendo Oscar Chaves o pai presumido), as células que aquele rechonchudo bebê tinha, há 65 anos [alterado na revisão: 78 anos completos, a partir do aniversário em 2021], já morreram todas e foram substituídas por outras – e isso muito mais de uma vez. Por algum milagre biológico, a impressão digital continua a mesma, imagino (não tiraram minha impressão digital quando eu nasci) mas, do ponto de vista físico e biológico, nada físico e biológico que aquele nenê tinha permanece em mim hoje exatamente como era em 7.9.1943.…

Atualmente a coisa fica ainda mais complicada. Algumas pessoas fazem transplante de órgãos: trocam, por exemplo, o seu coração pelo de outra pessoa; ou outros órgãos seus, como um rim… Nada impede que uma pessoa, hoje, receba múltiplos transplantes de órgãos de uma outra pessoa que morreu — ou de mais de uma pessoa. Em alguns casos, até, possivelmente, de um animal não humano. No futuro, é possível que seja possível até mesmo transplantar o cérebro de uma pessoal para outra (como Robert Heinlein já previu em I Will Fear No Evil / Não Temerei Mal Algum – livro que recomendo sem reservas no contexto desta discussão). Quando isso acontecer, se x recebe o transplante do coração, do cérebro, dos rins, e saiba Deus lá mais do que, de y, a pessoa resultante será x ou y – ou será uma mescla das duas, digamos xy? São os tribunais que vão resolver se ela continua x, ou y, ou passa a ser xy, ou w? (Que as leis e os tribunais vão ter de enfrentar essa questão mais cedo do que se pensa, não tenho dúvida.)

E ainda há a possibilidade de a pessoa receber próteses de vários tipos, com características visíveis puramente mecânicas ou com aparência humanoide. Um ser com várias próteses (algo concebível) será (ainda) uma pessoa humana ou será (ou passará a ser) um robô?

A possibilidade de transplantes de cérebro levanta questões importantes, porque se acredita que o cérebro é a base física e biológica da memória… e a nossa memória parece ser um componente essencial de nossa identidade pessoal. Quem sofre um acidente que afeta o cérebro pode perder sua memória, em parte ou totalmente.

E aqui o físico-biológico, de um lado, e o mental, do outro, começam a se confundir… E com o mental vêm o intelectual, o afetivo, a criatividade, a imaginação, a sensibilidade… Ou será que essas características não são total ou puramente mentais? 

Na verdade, John Locke, o grande filósofo britânico do século XVII (que, na minha opinião, é o segundo maior filósofo britânico de todos os tempos, e, portanto, da história, perdendo apenas para David Hume, meu santo padroeiro, mas ganhando de Bertrand Russell), uma vez defendeu a tese (em Essays Concerning Human Understanding) que a memória é o ÚNICO critério definidor de nossa identidade pessoal — que fique para lá o físico-biológico, como as impressões digitais ou arcada dentária…

Em um de seus famosos “experimentos mentais” (que ele gostava muito de fazer), John Locke postulou que se, num dado dia, um príncipe e um sapateiro acordassem com suas memórias totalmente trocadas, um teria se tornado o outro (e vice-versa): eles haveriam trocado de identidade pessoal (apesar de manter o mesmo corpo de antes da troca de memória, com suas impressões digitais, arcadas dentais, etc.). Entre outras mudanças, a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) sapateiro passaria a estar apaixonado pela princesa (ou por quem quer que fosse que o príncipe estivesse apaixonado), e a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) príncipe passaria a estar apaixonado pela mulher do sapateiro (ou por quem quer que fosse que o sapateiro estivesse apaixonado). O (até ali) sapateiro passaria a ter a inteligência sofisticada, os gostos refinados, a sensibilidade, a criatividade, a imaginação do (até então) príncipe, passaria a gostar de ler a melhor literatura, ouvir as mais delicadas músicas… Na música, deixaria de gostar de sertanejo raiz, ou de funk, para gostar de Mozart… E vice-versa.

Ou seja, para Locke, a nossa identidade pessoal nada tem que ver com física ou biologia: ela é definida por fatores puramente mentais. Ou seja: cai na província da psicologia ou (como Locke preferia) da filosofia.

(Lembro-me, neste contexto, de um filme de 1991 com Harrison Ford, que tem o título original de Regarding Henry, em que Ford era um advogado mau caráter e muito chato. Sem que ele soubesse, a mulher dele havia optado por encontrar uma companhia menos cansativa. Mas ele recebeu um tiro na cabeça (que atingiu o seu cérebro) durante um assalto e perdeu a memória: não se lembrava nem de quem era – e, num toque de realismo do filme, teve de reaprender a andar, a falar e a funcionar normalmente. A tese do filme é a de que ele, na verdade, virou outra pessoa: uma pessoa com caráter, legal, interessante, por quem a mulher dele (em sua identidade prévia) voltou a se apaixonar… [Vide http://www.imdb.com/title/tt0102768/]. Vide também o filme brasileiro Se eu Fosse Você, de 2006, em que os personagens – Tony Ramos e Glória Pires – trocam de identidade quando a mente de um passa a ocupar o corpo do outro, e vice-versa – ou seria o oposto: quando o corpo de um se apropria da mente do outro, e vice-versa. Curiosa e significativamente, a sinopse do filme no International Movie Data Base, afirma que os dois “trocaram de corpos” – “switched bodies”. No filme um dos personagens pergunta: se eu me jogar da janela, quem vai morrer, eu ou você? [Vide http://www.imdb.com/title/tt0448927/]. Estava para sair (quando eu escrevi a primeira versão deste artigo, em 2008), ou já saiu (hoje eu o reviso em 2022), Se eu Fosse Você 2. [Vide, para a sequência, http://www.imdb.com/title/tt1099227/]).

É verdade que, como sugere Robert Heinlein (com base, provavelmente, no que diz a maioria dos cientistas, que são, quase todos eles materialistas, e não dualistas, como René Descartes, ou até trialistas, como Karl Raymund Popper), nossa memória tem, no cérebro, a sua indispensável base física e biológica (se o cérebro morrer vão-se embora com ele nossas memórias). Talvez, como o próprio Heinlein sugere, em seu famoso romance, até mesmo o restante de nosso sistema nervoso tenha papel nisso, alguns hábitos e trejeitos nossos, que envolvem componentes físico-biológicos, ficando armazenados, não no cérebro, mas no restante do sistema nervoso central, podendo sobreviver até mesmo a um transplante de cérebros! Mas deixando de lado essa controvérsia científica meio futurística, a sugestão de Locke parece fazer muito sentido: eu sou quem eu me lembro de ter sido… Ou, como preferia dizer o Rubem Alves, eu sou o que fui… ou eu sou quem fui… ou, se o Rubem se lembrasse bem de suas leituras de Locke, eu sou quem eu me lembro de ter sido… Eu ainda sou protestante, dizia ele, porque um dia eu fui… e, eu acrescento: e porque me lembro claramente de ter sido! [Veja a esse propósito o belo artigo do Rubem Alves, “Reflexões de um Protestante Obstinado”, escrito originalmente em 1981, e transcrito em mais de um blog meu, mas a transcrição definitiva é no meu blog Rubem Alves: Teólogo, Filósofo, Educador, que eu criei como um tributo ao amigo querido, no endereço https://rubemalves.com/2021/09/16/rubem-alves-confissoes-de-um-protestante-obstinado/.%5D

O leitor atento terá percebido que, na discussão da identidade pessoal, passei rapidamente de características físicas e biológicas, como impressões digitais e arcadas dentárias, passando por questões que parecem, à primeira vista, ser puramente mentais, como nossa memória, algo que é discutido em manuais de psicologia e não em tratados de biologia ou, muito menos, física, e chegando, finalmente, a questões que são quase mais-do-que-mentais, chegando, quem sabe, ao plano do social, ou quem sabe, do socio-mental, ou da psicologia social: nossas características intelectuais e afetivas, nossa criatividade, nossa imaginação, nossa sensibilidade, quiçá nossos valores — tudo isso faz parte de nossa identidade pessoal, não faz? Ou será que devemos distinguir a identidade física-biológica (que é de natureza material), a identidade pessoal (que é de natureza mental, estando vinculada à memória, ou, pelo menos, dependente dela), e a identidade social, ou psico-social, que envolveria essas outras características nossas que acabei de mencionar: nossas características intelectuais (nossa inteligência e nossas ideias) e afetivas (as coisas de que gostamos e as que detestamos), nossa criatividade, nossa imaginação, nossa sensibilidade, quiçá nossos valores mais básicos (não só nossos gostos e preferências, como gosto mais de churrasco de picanha do que de carne moída com farinha de mandioca misturada).

Exceto no caso de alguns dinossauros mentais, que preferem morrer e se fossilizar a mudar de ideias, de afetos, de hábitos e costumes, etc., é possível que esse conjunto de características que estou chamando de psico-sociais (nossas ideias, etc.) mudem mais rapidamente que as células do nosso corpo… Tem gente que hoje pensa uma coisa, amanhã pensa outra, ontem gostava do Bolsonaro, hoje o acha um monstro genocida, antes era calmo, sereno, tolerante, hoje é explosivo, agressivo, disposto a partir para a ignorância diante da menor desavença ou discordância… (Já li em algum lugar que, ao casar, a mulher espera mudar o homem com quem está se casando, e o homem espera que a mulher que está desposando nunca mude, fique sempre como era quando solteiros os dois, carinhosa, delicada, atenciosa, prestativa, de fala mansa e dengosa… Os dois se frustram.)

O grande desafio, como os filósofos gregos já sabiam, é descobrir a continuidade que subjaz à mudança… E a continuidade, Locke descobriu, é dada, no caso da identidade pessoal, por fatores mentais, como a memória! Quando a memória falta, perdemos a continuidade, e passamos a ser outro, como no caso do filme de Harrison Ford. Ou a descontinuidade, como nós descobrimos a cada dia, é dada pela mudança de ideias, de características afetivas, de sensibilidades, de estilos de relacionamento, de formas de tratamento, de hábitos e costumes, etc.

Voltei a pensar sobre essas coisas (sobre as quais penso há muito tempo e até mesmo já escrevi bastante aqui) porque, recentemente, um número razoável de pessoas tem me dito que mudei bastante – talvez até demais – e quer saber quem sou eu hoje: serei eu quem agora pareço ser ou seria aquilo que eu antes era, o que para elas seria o meu eu real??? Em suma: há continuidade por baixo da mudança, ou eu sou um caso de mudança de personalidade?

Pablo Neruda confessou que viveu. Eu confesso, sem nenhuma vergonha, que mudei – na realidade, estou ainda mudando. Porém, a questão de 64 mil dólares é: aquilo que sou agora é o que realmente sou, ou será que meu eu real é aquilo que eu antes era e hoje eu mudei de identidade, vale dizer, de personalidade? 

Durma-se com um barulho desses… A questão é difícil. Confesso que se eu não fosse um cara bastante opinionado, com convições firmes, eu estaria no momento passando por uma enorme crise de identidade. Mas, como sou teimoso, persisto em acreditar, mesmo quando confrontado com evidência em contrário, que eu continuo eu mesmo. Como disse YHWH no passado, eu sou o que sou. A despeito de evidências ao contrário. E acabou. Ponto final. Quem quiser discordar, que discorde – mas eu não posso discordar de mim mesmo.

E estou certo de que continuo o mesmo Eduardo Chaves que eu era porque, afinal de contas, apesar das mudanças que eu não nego nem contesto, mas francamente admito, eu me lembro de que sou o mesmo que fui. Eu me lembro de que vivia, desde minha mais tenra idade, com Oscar e Edith Chaves, e os chamava de pais… Eu me lembro de que meus pais tiveram outros filhos e que, portanto, eu tive – e tenho – irmãos: Flávio, primeiro, depois Priscila, depois Eliane. Eu me lembro de que vivi em Marialva e Maringá no Paraná, nos anos 40 e no começo dos anos 50, e de que me mudei para Santo André no começo de 1952. Eu me lembro de que estudei no Grupo Escolar “Prof José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer, em Santo André, e de que tive como professoras, no Primário, de 1952 a 1955, Donas Maria José Ferraz de Alvarenga, Judith Ramos Milaneze, Elídia Lopes Duarte e Mercedes da Silveira Lopes (depois Mercedes Lopes Ferraz, quando ela se casou). Lembro-me de que, junto com o quarto ano Primário, fiz dois meses de Curso de Admissão com a Carla Strambio (hoje minha colega tradutora juramentada). Lembro-me de que entrei no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr Américo Brasiliense” em 1956 e lá fiquei até 1959, quando recebi o diploma (ou certificado, sei lá) do Ginásio, no Cine Tangará, em Santo André (e o Pedro Cia foi nosso paraninfo).

Não vou entediar o leitor com todos os fatos de que me lembro – e vou me calar sobre as pessoas que amei, ou sobre aquelas que quis ver mortas (ou que, ainda agora, gostaria de ver mortas, no Inferno, já sofrendo, desde já, as primícias das penas eternas…). Mas eu sou o que fui. Eu sou aquilo que me lembro de ter sido… Admito que a memória é seletiva (deixa coisas de fora) e até mesmo inventiva (traz pra dentro coisas que nunca aconteceram). Foi Mark Twain (se bem me lembro…) que disse, quando já velho, que é mentira que a nossa memória fica mais fraca quando a gente fica mais velho. A memória dele era tão boa, disse, que ele conseguia se lembrar até de coisas que nunca aconteceram… 

De qualquer forma, mesmo admitindo que, excepcionalmente, deletamos uns fatos e inventamos outros, nossa memória é que nos faz ser, hoje, o que somos. Dando por pressuposto que a maior parte de nossas memórias é verídica, nós somos, hoje, o que somos, porque fomos o que fomos no passado – e nos lembramos disso!

Assim, eu sou quem eu sou hoje, apesar de todas as mudanças, porque me lembro de que, em determinados momentos, quis mudar… e, como acontece agora, mudei e continuo mudando – e me lembro também de que, em outros momentos, quis mudar e, por alguma razão, não mudei… E me lembro ainda de que, em relação a determinados aspectos (os físicos e biológicos, por exemplo), mudei sem necessariamente querer mudar… 

E, em outros momentos, quis mudar e alguém me convenceu de que não era bom negócio…

Ontem [esta parte está sendo escrita em 9.1.2022, de manhã, como parte da revisão deste artigo] participei de um encontro virtual de 24 horas de “popperianos” — gente que, em maior ou menor medida, subscreve a ideias originadas pelo filósofo austríaco-depois-britânico Karl Raymund Popper — Sir Karl, como gostam de chamá-lo os entendidos. (Tomem cuidado: Bertrand Russell é “Lord Russell”, o título é herdado, mas Popper é apenas “Sir Karl”, título que nenhum filho herdou, até porque ele nunca teve nenhum filho). Quando recebi o convite, de meu amigo australiano Rafe Champion, me perguntei: mas será que eu sou mesmo, ou suficientemente, “popperiano” para participar? Certamente eu aceito e endosso muitas das ideias extremamente originais de Popper. Mas basta isso para ser popperiano? Não tenho dúvida de que meu orientador no doutorado, William Warren Bartley, III, que, por sua vez, teve Popper como orientador do seu doutorado, é popperiano. Embora eles tenham se desentendido em um momento, e ficado vários anos sem se ver e mesmo sem conversar, por carta ou qualquer outro meio, há razoável consenso entre os “popperianos” de que Bartley foi o “discípulo amado de Popper”, não só o mais brilhante, mas o que, apesar da briga, foi o mais querido, aquele que, para Popper, fez as vezes do filho que ele nunca teve, e que, como qualquer filho, especialmente os muito parecidos com o pai, de vez em quando se rebelam…

Uma ideia puxa a outra, quase como se eu estivesse brincando de deixar a minha consciência entrar em regime de free flow, fluxo livre… Lembrei-me de que, ao longo do meu doutorado (1970-1972) eu, em parte, pela força combinada de ideias de David Hume, sobre quem escrevi minha tese, e de Karl Popper, meu Doktorgrossvater, decidi que eu não era mais presbiteriano, nem protestante, nem cristão, nem “teu” (o oposto de ateu). Mas será que eu havia me tornado uma mescla de humeano e popperiano? Lembro-me de que, na minha recém-descoberta ateicidade, eu me interessei pelas ideias de uma “American Humanist Association“, e pensei em me tornar sócio dela. Quando falei sobre o assunto com Bill Bartley ele me disse algo assim: “O que é isso, você acabou de se livrar de uma gaiola e quer se meter em outra?” (Ele não usou a metáfora da gaiola, que é uma metáfora, tanto quanto eu saiba, criada pelo Rubem Alves, mas a ideia foi essa: você está se libertando de uma prisão e está procurando outra?

Isso me fez refletir, na ocasião, se era possível viver “desengaiolado”, ou, como preferia Bill Bartley, “desengajado”, “sans engagement“, “without commitment“. A tese de doutorado dele, famosa, foi publicada como Retreat to Commitment (Flucht ins Engagement, em Alemão). Nela ele criticou principalmente a Neo-Ortodoxia de Karl Barth, que, desiludido com a Teologia Liberal, resolveu se comprometer (engajar-se, fugir para o engagement) com “a revelação em Cristo”…

E “popperiano”, a gente poderia ser, sem ser criticado? A resposta foi de que popperiano a gente só poderia ser, não como um “ultimate commitment“, nem como um comprometimento total, que negligencia os concorrentes e os críticos, mas como algo provisional, sujeito e aberto a críticas, um popperianismo altamente auto-crítico, e, no caso de críticas irrespondíveis, próprias ou de terceiros, perfeitamente rejeitável — ou, se possível, modificável nos aspectos em que a crítica foi irrespondível.

Um comprometimento que a gente mesmo procura diariamente criticar, para o qual a gente procura críticas de outros… Se você resolve se considerar popperiano, seu dever é ler os críticos, os anti-popperianos, para analisar com seriedade se deve continuar sendo popperiano…

Desse jeito, sou popperiano até hoje, mas com ressalvas, e sem exclusividade. Também sou, em alguns aspectos, aristotélico, humeano, randiano, rothbardiano, cslewisiano, bultmanniano. Talvez até, em alguns aspectos, teísta, cristão, protestante, presbiteriano… Tudo isso sem compromissos definitivos e sem exclusividade.

Seria isso eclético demais? Estaria eu próximo do relativismo? Creio que não e não. Nunca seria, por exemplo, platonista, cartesiano, kantiano, hegeliano, existencialista, marxista, socialista, social-democrata keynesiano, presbiteriano fundamentalista…

Se eu não me lembrasse desses fatos, poderia fazer sentido afirmar que eu mudei recentemente de identidade (ou de personalidade). Mas eu me lembro do que eu era e sei o que eu sou, e sei que as mudanças recentes foram desejadas — e que outras mudanças ainda virão no tempo que me resta, apesar de eu estar beirando os oitenta. Apesar de, no momento, estar contente com o que hoje sou, ou estou me tornando – ainda que possa haver quem prefira que eu não tivesse mudado…

Desculpem-me os leitores se o meu post pode, em alguns aspectos, parecer enigmático ou mesmo ininteligível. Garanto-lhes que não é enigmático e que faz bastante sentido. Podem crer. Raul Seixas poderia até dizer que eu sou uma “metamorfose ambulante” — sem deixar, em nenhum momento, de ser eu mesmo. 

Em São Paulo, 22 de Dezembro de 2008. Revisão, com mudanças significativas, quatorze anos depois, em 9 de Janeiro de 2022. Quem quiser cotejar esta versão revista com a versão original, pode consultar “Identidade Pessoal e Mudanças [versão original de 2008]”, neste mesmo blog, Liberal Space, no endereço https://liberal.space/2008/12/22/identidade-pessoal-e-mudancas-versao-original-de-2008/.

Administrar o Tempo é Planejar a Vida, v.0 (1998)

NOTA: Este artigo é resumo, redigido em 1998, a pedido de meu amigo Wilson Azevedo, de um livreto, Administração do Tempo, que escrevi em 1992.

Geralmente quem escreve sobre administração do tempo não o faz porque seja especialista na questão, mas, sim, porque quer aprender mais sobre o assunto. Pelo menos foi esse o meu caso. Vou relatar aqui algumas de minhas descobertas, como roteiro para a leitura do quarto texto.

1) Administrar o tempo não é uma questão de ficar contando os minutos dedicados a cada atividade: é uma questão de saber definir prioridades. Provavelmente (numa sociedade complexa como a nossa), NUNCA vamos ter tempo para fazer tudo o que precisamos e desejamos fazer. Saber administrar o tempo é ter clareza cristalina sobre o que, para nós, é mais prioritário, dentre as várias coisas que precisamos e desejamos fazer – e tomar providências para que essas coisas mais prioritárias sejam feitas, sabendo que as outras provavelmente nunca vão ser feitas (mas tudo bem: elas não são prioritárias).

2) Dentre as coisas que vamos listar como prioritárias, algumas estarão ali porque nos são importantes, outras porque são urgentes. Imagino que algo que não é NEM importante NEM urgente não estará na lista de ninguém. E também sei que na lista de todo mundo haverá coisas que são IMPORTANTES E URGENTES. Não resta a menor dúvida de que estas coisas devem ser feitas imediatamente, ou, pelo menos, na primeira oportunidade. Poucas pessoas questionarão isso. O problema surge com coisas que consideramos importantes, mas não urgentes, e com coisas que são urgentes, mas às quais não damos muita importância.

3) Digamos que você considere importante ficar mais tempo com sua família. Por outro lado, você tem que trabalhar x horas por dia. Se o seu trabalho é mais importante do que ficar com a sua família, o problema está resolvido: você trabalha, mesmo que isso prejudique a convivência familiar. Mas e se o trabalho não é mais importante para você do que a convivência familiar? Neste caso, provavelmente o trabalho é urgente, no sentido de que tem que ser feito, pois doutra forma você vai ser despedido (ou perder clientes, se for autônomo ou empresário) e vai ter dificuldades para manter sua família (embora, sem trabalho, provavelmente vai poder passar mais tempo com ela…). Aqui o conflito é entre o importante e o urgente – e é aí que a maior parte de nós se perde, e por uma razão muito simples: algumas das tarefas que temos que realizar não são selecionadas por nós, mas nos são impostas. Isto é: não somos donos de todo o nosso tempo. Não temos, em relação ao nosso tempo, toda a autonomia que gostaríamos de ter. Quando aceitamos um emprego, estamos, na realidade, nos comprometendo a ceder a outrem o nosso tempo (e, também, o nosso esforço, a nossa capacidade, o nosso conhecimento, etc.). Este é um problema real e de solução difícil: não somos donos de boa parte de nosso tempo.

4) Acontece, porém, que geralmente usamos mal o tempo que dedicamos ao trabalho (e, por isso, temos que fazer hora extra ou trazemos trabalho para casa), ou mesmo o tempo que passamos em casa. Usar mal QUER DIZER que muitas vezes usamos o nosso tempo para fazer o que não é nem importante nem urgente, mas apenas algo que sempre fizemos, pela força do hábito. Alguém me disse, quando eu era criança, que a gente nunca deveria abandonar a leitura de um livro, por pior que ele fosse. Que bobagem! Mas quanto tempo desperdicei terminando de ler coisa que de nada me serviu por causa desse conselho! Uma vez me peguei dizendo à minha família que não poderia fazer algo (não me lembro o quê) domingo de manhã porque precisava ler os jornais. Eu lia, religiosamente, a Folha e o Estado aos domingos de manhã (sinto muito, folks: há tempo que não freqüento escola dominical). Lia por hábito. Achava que um professor tem que se manter informado. Mas quando disse que “precisava” ler os jornais me dei conta de que realmente não precisava lê-los. O que é de pior que poderia me acontecer se eu não lesse os jornais, me perguntei. NADA, foi a resposta que tive honestamente que dar. Se houver algo importante nos jornais provavelmente fico sabendo no noticiário da TV, ou na VEJA. Mas daí me perguntei: e preciso ler a VEJA todas as semanas? Resposta: não. Existe algo que eu prefiro ler/fazer naquelas manhãs de domingo que ganhei? Claro, muitas coisas – PARA AS QUAIS EU ANTES NÃO TINHA TEMPO. Ganhei as horas dos jornais, ganhei as horas da VEJA, fui ganhando uma horinha aqui outra ali, para as coisas que eu realmente queria fazer há muito tempo e não achava tempo…

5) Administrar o tempo é ganhar autonomia sobre a sua vida, não é ficar escravo do relógio. É uma batalha constante, que tem que ser ganha todo dia. Se você quer ter a autonomia de decidir passar mais tempo com a família, ou sem fazer nada, você tem que ganhar esse tempo deixando de fazer outras coisas que são menos importantes para você. Em última instância pode ser que você até tenha que, eventualmente, arrumar um outro emprego ou uma outra ocupação.

6) O tempo é distribuído entre as pessoas de forma bem mais democrática que muitos dos outros recursos de que nós dependemos (como, por exemplo, a inteligência). Todos os dias cada um de nós recebe exatamente 24 horas (a menos que seja o último dia de nossas vidas): nem mais, nem menos. Rico não recebe mais do que pobre, professor universitário não recebe mais do que analfabeto, executivo não recebe mais do que operário. Entretanto, apesar desse igualitarismo, uns conseguem realizar uma grande quantidade de coisas num dia – outros, ao final do dia, têm o sentimento de que o dia acabou e não fizeram nada. A diferença é que os primeiros percebem que o tempo, apesar de democraticamente distribuído, é um recurso altamente perecível. Um dia perdido hoje (perdido no sentido de que não realizei nele o que precisaria ou desejaria realizar) não é recuperado depois: é perdido para sempre.

7) Há os que afirmam, hoje, que o recurso mais escasso na nossa sociedade não é dinheiro, não são matérias primas, não é energia, não é nem mesmo inteligência: é tempo. Mas tempo se ganha, ou se faz, deixando de fazer coisas que não são nem importantes nem urgentes e sabendo priorizar aquelas que são importantes e/ou urgentes.

8) Quem tem tempo não é quem não faz nada: é quem consegue administrar o tempo que tem de modo a poder fazer aquilo que quer.

9) Por outro lado, ser produtivo não é equivalente a estar ocupado. Há muitas pessoas que estão o tempo todo ocupadas exatamente porque são improdutivas – não sabem onde concentrar seus esforços e, por isso, ciscam aqui, ciscam ali, mas nunca produzem nada. Ser produtivo é, em primeiro lugar, saber administrar o tempo, ter sentido de direção, saber aonde se vai.

10) Administrar o tempo, em última instância, é planejar estrategicamente a nossa vida. Para isso, precisamos, em primeiro lugar, saber aonde queremos chegar (definição de objetivos). Onde quero estar, o que quero ser, daqui a 5, 10, 25, 50 anos? O segundo passo é começar a estrategiar: transformar objetivos em metas (com prazos e quantificações) e decidir, em linhas gerais, como as metas serão alcançadas. O terceiro passo é criar planos táticos: explorar as alternativas específicas disponíveis para se chegar aonde queremos chegar, escolher fontes de financiamento (emprego, em geral, é fonte de financiamento), etc. Em quarto lugar, fazer o que tem que ser feito. Durante todo o processo, precisamos estar constantemente avaliando os meios que estamos usando, para verificar se estão nos levando mais perto de onde queremos vamos querer estar ao final do processo. Se não, troquemos de meios (procuremos outro emprego, por exemplo).

11) Mas tudo começa com uma verdade tão simples que parece uma platitude: se você não sabe aonde quer chegar, provavelmente nunca vai chegar lá – por mais tempo que tenha.

12) Quando o nosso tempo termina, acaba a nossa vida. Não há maneira de obter mais. Por isso, tempo é vida. Quem administra o tempo ganha vida, mesmo vivendo o mesmo tempo. Prolongar a duração de nossa vida não é algo sobre o qual tenhamos muito controle. Aumentar a nossa vida ganhando tempo dentro da duração que ela tem é algo, porém, que está ao alcance de todos. Basta um pouco de esforço e determinação.

Campinas, 27 de Março de 2001

Administração do Tempo – Entrevista para a Revista “É Domingo” (de Sorocaba)

[Entrevista dada por e-mail em 25/2/2007 para Vanessa Olivier, da Revista É Domingo, de Sorocaba.]

É Domingo:

Como organizar o tempo na vida pessoal, conseguindo um equilíbrio entre trabalho, família, lazer?

Eduardo Chaves:

Interessei-me pelo tema porque, há uns 15 ou 16 anos, andava assoberbado pelas demandas do  trabalho – era professor da UNICAMP, consultor de empresas, consultor de escolas, tinha filhos para criar, etc. Lazer, nem se pensava. Muitas vezes a família ia para a praia e eu ficava trabalhando. Trazia trabalho para casa à noite. A maior parte das pessoas conhece bem o problema. Mas, por outro lado, li, naquela ocasião, que o presidente de uma grande empresa multinacional havia saído de férias por 30 dias, indo para a Terra do Fogo, e que esquecia do trabalho durante aqueles dias e queria ser esquecido: nem deixava o telefone de onde estava. Perguntei-me: como ele consegue?

Fui estudar a questão e percebi, primeiro, que não há solução fácil ou mágica. A vida contemporânea é complexa mesmo e faz inúmeras demandas sobre o nosso tempo. Mas, embora nem fáceis nem mágicas, há medidas que podem nos ajudar a assumir controle de nossa vida – porque é disso, em última instância, que se trata.

A primeira medida é ganhar clareza sobre como gastamos o nosso tempo – fazendo um acompanhamento detalhado dos nossos dias durante um certo período.

A segunda medida é analisar cuidadosamente esses dados, classificando-os entre “Importantes e Urgentes”, “Importantes mas não Urgentes”, “Não-Importantes mas Urgentes” e “Não-Importantes e Não-Urgentes”.

A terceira medida é imediatamente deixar de fazer o que não é nem importante nem urgente. Ler jornais e revistas semanais de cabo a rabo, navegar sem rumo pela Internet, checar os e-mails duzentas vezes por dia, arranjar os ícones de aplicativos no desktop, brigar com a operadora de telefone por causa de um erro de cinco reais na conta, etc. – nada disso é importante ou urgente. Ganham-se preciosos minutos por dia e por semana deixando de fazer isso.

A quarta medida é tentar lidar com o que é urgente mas não importante. Como as coisas aqui são urgentes, não é possível simplesmente deixar de fazê-las. A solução é delega-las. Uma secretária, um assistente, um estagiário, um office boy, uma empregada doméstica – ou mesmo o cônjuge ou os filhos – podem assumir muitas dessas tarefas. O problema é que muita gente não consegue delegar. Conheço um grande advogado que não delega a estagiários nem mesmo a tarefa de ir ao fórum para acompanhar o andamento de processos. Segundo alega, uma vez fez isso e perdeu um prazo importante porque o estagiário bobeou. Mas nunca iremos conseguir administrar o tempo se não soubermos delegar – e lidar com eventuais problemas à medida que aconteçam.

Isso resolvido, temos de lidar com o que realmente vale a pena: as coisas importantes.

Algumas delas são também urgentes: se não pudermos delegá-las a quem possa realizá-las bem, temos de nos dedicar a elas imediatamente e fazê-las o mais rápido possível. Sem relaxo, mas, também, sem perfeccionismo. A incapacidade de delegar e o perfeccionismo são, talvez, os dois maiores inimigos da boa administração do tempo. A pressa, dizem, é inimiga da perfeição. Mas a busca da perfeição, embora necessária nas artes e no esporte, é inimiga da gestão eficaz do tempo. O artista e o esportista só conseguem chegar perto da perfeição porque são focados exclusivamente numa coisa – e deixam tudo o mais de lado. Nós, pobres mortais, que não podemos fazer isso, tempos de abrir mão da busca da perfeição  – sem, porém, abrir mão de certos padrões de qualidade.

Outras coisas importantes não são tão urgentes, ou assim parece. A nossa tendência aqui é procrastinar – empurrá-las com a barriga. A procrastinação é o terceiro grande inimigo da boa administração do tempo. Ter tempo de qualidade com a família é importante para você? Priorize isso. Abra mão, se necessário, de outras coisas menos importantes. Cuidar de sua saúde, exercitar-se, ter lazer, é importante para você? Priorize isso. Nada faz com que algo importante se torne também urgente como um grande susto com a saúde: um infarto, por exemplo. Sei do que falo nesta questão – embora às vezes me pegue me comportando como se não soubesse…

É Domingo:

Qual são as consequências para quem não consegue tempo para a saúde, para o lazer, para a família?

Eduardo Chaves:

Um infarto, por exemplo, como acabo de mencionar… Ou o cônjuge encontrar alguém que lhe dê mais tempo e atenção… Ou perceber que os filhos cresceram e você não notou, e, hoje, são quase estranhos em suas vidas… Ninguém conscientemente deseja essas coisas. Mas, frequentemente, nos comportamos como se as desejássemos.

É Domingo:

No que isso pode prejudicar no mundo dos negócios?

Eduardo Chaves:

Uma pessoa de negócio com problemas de saúde ou com problemas familiares não tem condições de apresentar o mesmo desempenho que apresentaria se a saúde estivesse 100% e tudo estivesse bem com o cônjuge e os filhos.

É Domingo:

Quais são as principais barreiras encontradas pelas pessoas que não conseguem administrar sua agenda? E como elas podem rompê-las?

Eduardo Chaves:

Já as listei: incapacidade de delegar, perfeccionismo, procrastinação. É possível adquirir novos hábitos nessas áreas – mas não é fácil: exige determinação, paciência e persistência. Sempre vai haver recaídas – mas não podemos usá-las como justificativa para voltar aos velhos hábitos.

É Domingo:

O que é preciso saber para conseguir sucesso na vida profissional e pessoal?

Eduardo Chaves:

Gosto de listar os Seis P’s: Pensamento, Propósito, Paixão, Plano, Produção, Persistência.

O sucesso só vem para quem sabe o que busca, para quem sabe aonde quer chegar. Essa a função do Pensamento: uma ideia norteadora que vai nos servir de bússola.

Mas o Pensamento só não basta: é preciso que ele se transforme em um Propósito.

É preciso que esse Propósito seja perseguido com Paixão.

Mas a Paixão não é substituto para a elaboração de um Plano racional para realizar o Propósito.

Um Plano certamente não pode ficar no papel: precisa ser posto em prática, transformado em ação. Essa é a função do que chamo de Produção.

Por fim, Persistência. Vai haver problemas e dificuldades, haverá horas em que ficaremos tentados a desistir… Mas os que são bem sucedidos são aqueles que, mesmo quando caem, “levantam-se, sacodem a poeira e dão a volta por cima”.

É Domingo:

Por fim, sua formação profissional e especialidades.

Eduardo Chaves:

Fiz curso de Graduação e Mestrado em Teologia e Doutorado em Filosofia. Fui professor universitário durante 35 anos – 32 dos quais na UNICAMP, da qual me aposentei no final do ano passado. Há cerca de 25 anos me enveredei pela área do uso da tecnologia na eficiência pessoal, no treinamento, na educação. Isso é hoje uma de minhas áreas de atuação profissional, como consultor. A Microsoft é minha principal cliente aqui. Desde janeiro deste ano sou Secretário Adjunto de Ensino Superior do Governo do Estado de São Paulo.

Em Campinas, 25 de fevereiro de 2007